A mente estendida

Onde a mente para e o resto do mundo começa? Geralmente há duas respostas. Alguns aceitam os limites da pele e do crânio, e dizem que o que está fora do corpo, está fora da mente. Propomos um externalismo ativo, destacando o papel do ambiente nos processos cognitivos.
Escrito por Andy Clark e David Chalmers
Traduzido por Rodrigo Ulhôa
Revisado por Eros Carvalho
Crédito: gerado por IA.

1. Introdução 

Onde a mente pára e o resto do mundo começa? A questão nos convida a dois padrões de resposta. Alguns aceitam os limites da pele e do crânio, e dizem que o que está fora do corpo, está fora da mente. Outros estão impressionados com argumentos que sugerem que o significado de nossas palavras ‘não está exatamente na cabeça’, e sustentam que esse externalismo sobre o significado se transporta para um externalismo sobre a mente. Nós propomos buscar uma terceira posição. Defendemos um tipo muito diferente de externalismo: um externalismo ativo, baseado no papel ativo do ambiente na condução dos processos cognitivos. 

2. Cognição estendida 

Considere três casos sobre resoluções de problemas humanos: 

  1. Uma pessoa se senta em frente a uma tela de computador que exibe imagens de várias formas geométricas bidimensionais e é suscitada a responder perguntas sobre os encaixes potenciais de tais formas dentro de uma configuração representada. Para avaliar o encaixe, a pessoa deve rotacionar mentalmente as formas para alinhá-las com suas configurações. 
  2. Uma pessoa se senta em frente a uma tela de computador semelhante, mas aqui ela pode escolher entre rotacionar fisicamente a imagem na tela, apertando um botão de rotação, ou rotacionar mentalmente a imagem como antes. Podemos também supor, não de modo irrealista, que existe algum ganho de velocidade na operação de rotação física.
  3. Num certo futuro cyberpunk, uma pessoa se senta em frente a uma tela de computador semelhante. Contudo, esse agente se beneficia de um implante neuronal que pode realizar a operação de rotação tão rapidamente quanto o computador no exemplo anterior. Ele deve escolher qual recurso interno usar (o implante ou a rotação mental à moda antiga), pois cada um desses recursos exige diferentes demandas de atenção e outras atividades cerebrais simultâneas. 

Quanta cognição está presente nesses casos? Propomos que todos os três casos sejam semelhantes. O caso (3), com o implante neural, parece claramente se alinhar ao caso (1). E o caso (2), com o botão de rotação, exibe o mesmo tipo de estrutura computacional que o caso (3), distribuído entre o agente e o computador, em vez de internalizado dentro do agente. Se a rotação no caso (3) é cognitiva, com que direito consideramos o caso (2) como fundamentalmente diferente? Não podemos simplesmente apontar para os limites da pele/crânio como justificação, dado que a legitimidade destes limites é justamente o que está em questão. Mas nenhum dos casos parece diferente. 

O tipo de caso que acabamos de descrever não é de modo algum tão exótico quanto possa parecer à primeira vista. Não é apenas a presença dos recursos computacionais externos avançados que levantam a questão, mas, antes, a tendência geral de humanos raciocinadores que dependem muito de suportes ambientais. Por isso, considere o uso da caneta e do papel para realizar uma multiplicação longa (McClelland et. al. 1986, Clark, 1989), o uso da reconfiguração física do bloco de letras para induzir a recordação de palavras no jogo Scrabble (Kirsh, 1995), o uso de instrumentos tais como a régua de cálculo náutica (Hutchins, 1995) e a parafernália geral de linguagens, livros, diagramas e culturas. Em todos esses casos, o cérebro individual realiza algumas operações e algumas delas são delegadas para manipulações do meio externo. Se nossos cérebros fossem diferentes, essa distribuição de tarefas seria, sem dúvidas, diferente. 

De fato, os casos de rotação mental descritos nos cenários (1) e (2) são reais. Os casos refletem opções disponíveis aos jogadores do game Tetris. No Tetris, formas geométricas que vão caindo devem ser rapidamente direcionadas para um espaço apropriado em uma estrutura emergente. Um botão de rotação pode ser usado. David Kirsh e Paul Maglio (1994) calculam que a rotação física de uma forma em 90 graus leva cerca de 100 milissegundos, mais cerca de 200 milissegundos para apertar o botão. Chegar ao mesmo resultado pela rotação mental leva cerca de 1000 milissegundos. Kirsh e Maglio continuam a apresentar evidência persuasiva de que a rotação física é usada não apenas para posicionar uma forma pronta para caber num espaço, mas, muitas vezes, ajuda a determinar se a forma e o espaço são compatíveis. Esse último uso constitui um caso do que Kirsh e Maglio chamam de uma “ação epistêmica”. Ações epistêmicas alteram o mundo para auxiliar e aumentar processos cognitivos, como o reconhecimento e a busca. Ações meramente pragmáticas, por contraste, alteram o mundo porque alguma mudança física é em si mesma desejável (p. ex., colocar cimento no buraco represado). 

Ação epistêmica, sugerimos, requer a expansão do crédito epistêmico. Se, quando abordamos uma tarefa, uma parte do mundo funciona como um processo que, fosse ele feito na cabeça, não teríamos hesitação em reconhecer como parte do processo cognitivo, então esta parte do mundo é (assim defendemos) parte do processo cognitivo. Processos cognitivos não estão (todos) na cabeça! 

3. Externalismo ativo 

Nesses casos, o organismo humano está conectado com uma entidade externa em uma interação bidirecional, criando um sistema acoplado que pode ser visto como um sistema cognitivo por direito próprio. Todos os componentes no sistema desempenham um papel causal ativo e conjuntamente governam o comportamento do mesmo modo que a cognição governa. Se eliminarmos o comportamento externo, a competência comportamental do sistema diminuirá, assim como se eliminássemos uma parte do seu cérebro. Nossa tese é a de que esse tipo de processo acoplado é igualmente um processo cognitivo, quer esteja na cabeça ou não. 

Esse externalismo difere muito de uma variedade comum defendida por Putnam (1975) e Burge (1979). Quando eu acredito que a água é molhada e meu gêmeo acredita que a água gêmea é molhada, os aspectos externos responsáveis pelas diferenças em nossas crenças são distais e históricos, na outra extremidade de uma longa cadeia causal. Aspectos do presente não são relevantes: se eu estiver cercado por XYZ agora mesmo (talvez eu tenha me teletransportado para a Terra Gêmea), minhas crenças ainda se referem à água padrão, por causa da minha história. Nesses casos, os aspectos externos relevantes são passivos. Por causa da sua natureza distal, eles não desempenharão nenhum papel na condução do processo cognitivo no aqui e agora. Isso é refletido pelo fato de que ações realizadas por mim e pelo meu gêmeo são fisicamente indistinguíveis, a despeito de nossas diferenças externas.

Nos casos que descrevemos, por contraste, os aspectos externos relevantes são ativos, executando uma função crucial no aqui-e-agora. Porque eles são acoplados no organismo humano, eles têm um impacto direto no organismo e em seu comportamento. Nesses casos, as partes relevantes do mundo não estão soltas no outro fim de uma longa cadeia causal, mas no ciclo. Concentrar nesse tipo de acoplamento nos leva a um externalismo ativo, como oposto ao externalismo passivo de Putnam e Burge. 

Ao abraçar o externalismo ativo, permitimos explicações mais naturais de todos os tipos de ações. É possível explicar minhas escolhas de palavras no jogo de palavras cruzadas, por exemplo, como o resultado de um processo cognitivo estendido que envolve a reconfiguração de peças no meu suporte de peças. É claro, alguém pode sempre tentar explicar minhas ações em termos dos processos internos e em uma série longa de “entradas” e “ações”, mas essa explicação seria inútilmente complexa. Se um processo isomórfico estivesse acontecendo no cérebro, não sentiríamos necessidade de caracterizá-lo dessa maneira incômoda. Em um sentido muito real, a reconfiguração das peças no tabuleiro não é parte da ação; ela é parte do pensamento

Alguns acham esse tipo de externalismo impalatável. Uma razão pode ser que muitos identificam o cognitivo com a consciência, e parece longe de ser plausível que a consciência se estenda para fora da cabeça nesses casos. Mas nem todo processo cognitivo, pelo menos no uso padrão, é um processo consciente. É amplamente aceito que todos os tipos de processos, além dos limites da consciência, desempenham um papel crucial no processamento cognitivo: por exemplo, na recuperação da memória, nos processos linguísticos e na aquisição de habilidades. Então, o mero fato de que os processos externos são externos onde a consciência é interna não é razão para negar que estes processos são cognitivos. 

De modo notório, se pode argumentar que o que mantém os processos da cognição real na cabeça é a exigência de que os processos cognitivos sejam portáveis. Aqui, somos movidos por uma concepção do que pode ser chamado de Mente Nua: um pacote de recursos e operações que podemos sempre aplicar em uma tarefa cognitiva, desconsiderando o ambiente local. Nessa concepção, o problema com os sistemas acoplados é que eles são muito facilmente desacoplados. Os processos cognitivos verdadeiros são aqueles que estão no núcleo constante do sistema; qualquer coisa diferente é um acréscimo extra. 

Existe algo importante nesta objeção. O cérebro (ou o cérebro e o corpo) inclui um pacote de recursos cognitivos básicos, portáteis, que é de interesse intrínseco. Esses recursos podem incorporar ações corpóreas dentro de processos cognitivos, como quando usamos os nossos dedos como memória de trabalho em um cálculo complicado, mas eles não abrangem os aspectos mais contingentes de nosso ambiente externo, tal como em uma mini calculadora. Contudo, a mera contingência de acoplar não exclui o status cognitivo. Em um futuro distante, podemos ser capazes de conectar vários módulos dentro de nosso cérebro para nos auxiliar: um módulo para a memória de curto prazo, quando precisamos dela, por exemplo. Quando um módulo está conectado, os processos que o envolvem são tão cognitivos como se estivessem lá o tempo todo. 

Mesmo se alguém fosse tornar o critério de portabilidade como fundamental, o externalismo ativo não seria minado. Contar com os dedos sempre foi algo aceito como processo cognitivo, e é fácil levar as coisas mais adiante. Pense na velha imagem do engenheiro que leva um cinto de ferramentas por onde quer que ande. E se as pessoas sempre levassem uma mini calculadora, ou as têm implantadas? O verdadeiro critério da intuição da portabilidade é que, para os sistemas acoplados serem relevantes para o núcleo da cognição, um acoplamento confiável é exigido. Acontece que muitos acoplamentos confiáveis têm lugar dentro do cérebro, mas podem facilmente existir acoplamentos confiáveis com o ambiente também. Se os recursos da minha calculadora ou da minha agenda estão sempre lá quando eu preciso deles, então eles são acoplados em mim tão confiavelmente quanto precisamos. Na realidade, eles são parte do pacote básico dos recursos cognitivos que eu trago para lidar com o mundo cotidiano. Esses sistemas não podem ser impugnados simplesmente com base no perigo de danos discretos, perda, mal funcionamento, ou por causa de qualquer desacoplamento ocasional: o cérebro biológico está em um perigo semelhante, e em alguns casos perde temporariamente a capacidade em episódios de sono, intoxicação e emoção. Se as capacidades relevantes estão geralmente lá quando elas são exigidas, esse acoplamento é o suficiente. 

Além do mais, pode ser que o cérebro biológico tenha de fato evoluído e amadurecido de maneiras relacionadas à presença confiável de um ambiente externo manipulável. Parece certamente que a evolução tem favorecido as capacidades de integração que foram especialmente orientadas a parasitar os ambientes locais com a finalidade de reduzir a carga de memória interna e até de transformar a natureza própria dos problemas computacionais. Nosso sistema visual tem evoluído para depender do ambiente de várias formas: eles exploram fatos contingentes sobre a estrutura das cenas naturais (ver Ullman e Richards, 1984), por exemplo, e eles tiram vantagem dos atalhos computacionais oferecidos pela locomoção e pelo movimento corpóreo (ver Blake e Yuille, 1992). Talvez existam outros casos onde a evolução tem achado vantajoso explorar a possibilidade do ambiente como integrado à cognição. Se esse é o caso, então o acoplamento externo é parte de um conjunto básico de recursos cognitivos que sempre carregamos conosco no mundo. 

Outro exemplo pode ser a linguagem, que parece ser um meio central pelo qual os processos cognitivos são estendidos no mundo. Pense em um grupo de pessoas num brainstorming ao redor de uma mesa, ou uma filósofa que pensa melhor ao escrever, desenvolvendo suas ideias enquanto escreve. Pode ser que a linguagem evoluiu, em parte, para capacitar tais extensões de nossos recursos cognitivos dentro de sistemas acoplados ativamente. 

Dentro do tempo de vida de um organismo, ademais, o aprendizado individual pode ter moldado o cérebro de maneiras que repousam sobre extensões cognitivas que nos cercam enquanto aprendemos. A linguagem é novamente um

exemplo central aqui, como são os vários artefatos físicos e computacionais que são rotineiramente usados como extensões cognitivas por crianças em escolas e por estagiários em várias profissões. Em tais casos, o cérebro desenvolve de um modo que complementa as estruturas externas, e aprende a desempenhar seu papel dentro de um sistema densamente acoplado e unificado. Uma vez que reconhecemos o papel crucial do ambiente em constranger a evolução e o desenvolvimento da cognição, nós vemos que a cognição estendida é um processo cognitivo central, não um extra adicional.

4. Da cognição à mente 

Até agora nós falamos muito sobre ‘processamento cognitivo’ e defendemos sua extensão dentro do ambiente. Alguns podem pensar que a conclusão foi comprada barata demais. Talvez algum processamento tenha lugar no ambiente, mas e a mente? Tudo que dissemos até agora é compatível com a concepção de que estados mentais autênticos – experiências, crenças, desejos, emoções e assim por diante – são todos determinados pelos estados do cérebro. Talvez o que é autenticamente mental seja interno, afinal de contas? 

Propomos levar as coisas um passo adiante. Enquanto alguns estados mentais, tais como as experiências, podem ser internamente determinadas, existem outros casos nos quais fatores externos fazem uma contribuição importante. Em particular, argumentaremos que as crenças podem ser constituídas parcialmente por aspectos do ambiente, quando esses aspectos desempenham o tipo correto de função ao orientar os processos cognitivos. Se esse é o caso, a mente se estende dentro do mundo. 

Primeiro, considere um caso normal de crença situada na memória. Inga ouve de um amigo que há uma exibição no Museu de Arte Moderna, e decide ir vê-la. Ela pensa por um momento e lembra que o museu fica na Rua 53, então ela caminha até a Rua 53 e entra no museu. Parece claro que Inga acredita que o museu está na Rua 53, e que ela acreditava nisso antes dela consultar sua memória. Não era anteriormente uma crença ocorrente, como também não é a maioria das nossas crenças. A crença estava em algum lugar na memória, esperando ser acessada. 

Agora considere Otto. Otto sofre da doença de Alzheimer, e, como muitos pacientes da doença, ele confia nas informações do ambiente para ajudar a estruturar a sua vida. Otto carrega um caderno onde quer que vá. Quando aprende uma nova informação, a escreve no caderno. Quando precisa de alguma velha informação, ele a procura no caderno. Para Otto, seu caderno executa a função que normalmente é executada por uma memória biológica. Hoje, Otto ouve sobre a exposição no Museu de Arte Moderna e decide ir vê-la. Ele consulta o caderno, que diz que o museu está na Rua 53, então caminha até a Rua 53 e entra no museu. 

Claramente, Otto caminhou até a Rua 53 porque quis ir ao museu e acreditou que o museu estava na Rua 53. E do mesmo modo que Inga tinha suas crenças antes de consultar sua memória, parece razoável dizer que Otto acreditou que o museu estava na Rua 53 mesmo antes de consultar seu caderno. Pois, nos aspectos relevantes, os casos são inteiramente análogos: o caderno executa para Otto a mesma função que a memória executa para Inga. A informação no caderno funciona exatamente como a informação que constitui uma crença ordinária não ocorrente; apenas acontece que essa informação está além da pele. 

A alternativa é dizer que Otto não tem uma crença sobre a questão até que consulte seu caderno; no máximo, ele acredita que o museu está localizado no endereço no caderno. Mas, se seguirmos Otto de perto por um tempo, veremos como é antinatural esse modo de falar. Otto está constantemente usando seu caderno como rotina. É central em suas ações em todos os tipos de contextos, assim como uma memória ordinária é central a uma vida ordinária. A mesma informação pode chegar várias vezes, talvez sendo modificada ligeiramente em cada ocasião, antes de se guardar dentro dos recessos de sua memória artificial. Dizer que as crenças desaparecem quando o caderno é arquivado parece perder a imagem mais ampla na mesma medida em que dizer que as crenças de Inga desaparecem assim que ela estiver mais consciente delas. Em ambos os casos, a informação está confiavelmente lá quando necessária, disponível à consciência e disponível para orientar a ação, na medida em que esperamos o que uma crença seja. 

De fato, na medida em que as crenças e desejos são caracterizados por seus papéis explicativos, os casos de Otto e Inga parecem semelhantes: a dinâmica causal essencial dos dois casos se espelham precisamente. Estamos satisfeitos em explicar as ações de Inga em termos de seu desejo ocorrente de ir ao museu e sua crença durável de que o museu está na Rua 53, e deveríamos estar satisfeitos em explicar as ações de Otto da mesma forma. A alternativa é explicar as ações de Otto em termos de seu desejo ocorrente de ir ao museu, sua crença durável de que o museu está na localização escrita no caderno, e o fato acessível de que o caderno diz que o museu está na Rua 53; mas isso complica desnecessariamente a explicação. Se devemos recorrer à explicação da ação de Otto dessa forma, então devemos também fazer isso para várias outras ações nas quais seu caderno está envolvido; em cada uma das explicações, haverá um termo extra envolvendo o caderno. Sustentamos que explicar as coisas dessa forma é dar um passo a mais. Isso é inutilmente complexo, na medida em que seria inútilmente complexo explicar as ações de Inga em termos das crenças sobre sua memória. O caderno é uma constante para Otto, ao passo que a memória é uma constante para Inga; apontar isso em cada explicação crença/desejo seria redundante. Em uma explicação, simplicidade é poder. 

Se isso for correto, podemos ainda construir o caso de Otto Gêmeo, que é exatamente como Otto, exceto que há pouco ele escreveu erradamente em seu caderno que o Museu de Arte Moderna estava na Rua 51. Hoje, Otto Gêmeo é uma duplicata física de Otto a partir da pele, mas seu caderno difere. Consequentemente, Otto Gêmeo é melhor caracterizado como acreditando que o museu está na Rua 51, enquanto Otto acredita estar na Rua 53. Nesses casos, uma crença não está simplesmente na cabeça. 

A moral é que quando se chega a crença, não há nada sagrado sobre o crânio e a pele. O que faz certa informação contar como uma crença é a função que ela executa e não há razão pela qual a função relevante possa ser executada apenas a partir de dentro do corpo. 

Alguns irão resistir a essa conclusão. Um oponente pode fincar seus pés e insistir que como ele usa o termo ‘crença’, ou talvez ainda de acordo com o uso padrão, Otto simplesmente não se qualifica como acreditando que o museu está na Rua 53. Não pretendemos debater qual é o uso padrão; nosso ponto mais amplo é que a noção de crença deveria ser usada a fim de que Otto se qualifique como tendo a crença em questão. Em todos os aspectos importantes, o caso de Otto é semelhante ao caso padrão da crença (não-ocorrente). As diferenças entre o caso de Otto e o caso de Inga são notáveis, mas elas são superficiais. Ao usar a noção de ‘crença’ de uma maneira ampla, seleciona-se algo mais próximo de um tipo natural. A noção se torna mais profunda e mais unificada, e é mais útil na explicação. 

Para oferecer resistência substancial, um oponente tem que mostrar que os casos de Otto e Inga diferem em certos aspectos relevantes e importantes. Porém, em que sentido profundo os casos são diferentes? Argumentar unicamente em função de que a informação está na cabeça em um caso, mas não em outro, seria petição de princípio. Se essa diferença é relevante para uma diferença na crença, ela certamente não é primitivamente relevante. Para justificar o tratamento diferente, devemos encontrar alguns pressupostos diferentes mais básicos entre os dois. 

Pode ser sugerido que os casos mostram diferenças relevantes porque Inga tem um acesso mais confiável à informação. Além disso, alguém pode tirar o caderno de Otto a qualquer hora, mas a memória de Inga está segura. Não é implausível que a constância seja relevante: na verdade, o fato de que Otto sempre usa o seu caderno exerce certo papel em nossa justificação de seu status cognitivo. Se Otto estivesse consultando um guia em papel uma única vez, seríamos muito menos propensos a atribuir a ele uma crença padrão. Mas, no caso original, o acesso de Otto ao caderno é muito confiável – não perfeitamente confiável, é claro, mas tampouco é o acesso de Ingá à sua própria memória. Uma cirurgia poderia limitar o seu cérebro, ou, mais mundanamente, ela poderia ter bebido muito. A mera possibilidade de tal limitação não é o suficiente para negar que ela tem a crença. 

Alguém pode pensar que o acesso de Otto ao seu caderno é algo que de fato vem e vai. Ele se banha sem o caderno, por exemplo, e ele não pode o ler quando está escuro. Decerto sua crença não pode ir e vir tão facilmente? Poderíamos ficar ao redor desse problema redescrevendo a situação, mas, em nenhum caso uma desconexão temporariamente ocasional ameaça a nossa afirmação. Ademais, quando Inga está dormindo, ou quando está intoxicada, nós não dizemos que a crença dela desaparece. O que realmente importa é que a informação esteja facilmente disponível quando o sujeito precisa dela, e essa condição é igualmente satisfeita nos dois casos. Se o caderno de Otto estivesse quase sempre indisponível a ele nas vezes em que a informação seria útil, isto seria um problema, pois a informação não seria capaz de executar a função de orientar a ação que é central a crença; mas, se ela está facilmente disponível na maioria das situações relevantes, a crença não está em perigo. 

Talvez a diferença seja que Inga tem um acesso melhor à informação do que Otto? Os processos ‘centrais’ de Inga e da sua memória provavelmente tem alta largura de banda entre si, comparada ao baixo nível da conexão entre Otto e seu caderno. Porém, isso por si só não mostra a diferença entre acreditar e não acreditar. Considere Lucy como amiga de Inga frequentadora do museu, cuja memória biológica tem apenas uma conexão de baixo nível com sistemas centrais, devido a uma biologia incomum ou por alguma desventura do passado. O processamento no caso de Lucy pode ser menos eficiente, porém, na medida em que a informação relevante está acessível, Lucy claramente acredita que o museu está na Rua 53. Se a conexão era muito indireta – se Lucy tivesse que se esforçar muito para recuperar a informação, com resultados confusos, ou se a ajuda de um psicoterapeuta fosse necessária – podemos nos tornar mais relutantes em atribuir a crença, mas tais casos vão além da situação de Otto, na qual a informação é acessível facilmente. 

Outra sugestão pode ser que Otto tenha acesso à informação relevante apenas pela percepção, visto que Inga tem acesso mais direto – pela introspecção, talvez. De certas maneiras, no entanto, colocar as coisas dessa forma é petição de princípio. Além disso, estamos, na realidade, defendendo um ponto de vista sobre o qual os processos internos de Otto e seu caderno constituem um único sistema cognitivo. Da perspectiva desse sistema, o fluxo de informação entre o caderno e o cérebro não é propriamente perceptual; não envolve o impacto de alguma coisa fora do sistema. É mais semelhante fluxo de informação dentro do cérebro. O único modo profundo no qual o acesso é perceptual é que no caso de Otto há uma fenomenologia perceptual distintamente associada com a recuperação da informação, ao passo que no caso de Inga não há. Mas por que deveria a natureza de uma fenomenologia associada fazer uma diferença ao status de uma crença? A fenomenologia não é visual, é claro. Mas, para a fenomenologia visual, consideremos um Exterminador, a partir do filme de Arnold Schwarzenegger de mesmo nome. Quando ele lembra de alguma informação pela memória, esta é ‘exibida’ diante dele em seu campo visual (ele é supostamente consciente dela, pois existem várias cenas retratando seu ponto de vista). O fato de que memórias duráveis são lembradas desse modo incomum faz pouca diferença em seus status como crenças permanentes. 

Estas várias pequenas diferenças entre os casos de Otto e Inga são todas diferenças superficiais. Se concentrar nelas seria perder o modo como, para Otto, as anotações em seu caderno executam o mesmo tipo de função que as crenças executam ao guiar a vida de muitas pessoas. 

Talvez a intuição de que Otto não tem uma crença verdadeira venha de um sentimento residual de que as únicas crenças verdadeiras são crenças ocorrentes. Se encararmos isso seriamente, a crença de Inga será excluída também, como muitas das crenças que atribuímos na vida cotidiana. Essa seria uma posição extrema, mas elas podem ser a forma mais consistente de negar a crença de Otto. Até mesmo em uma posição um pouco menos extrema – a posição de que uma crença deve estar disponível para a consciência, por exemplo – a entrada do caderno de Otto parece se qualificar exatamente como a memória de Inga. Uma vez que as crenças disposicionais são aceitas, é difícil resistir à conclusão de que o caderno de Otto tem todas as disposições relevantes. 

5. Além dos limites externos 

Se a tese é aceita, o quão longe deveríamos ir? Todos os tipos de casos paradoxais vem à mente. E sobre aquele povoado de amnésicos em Cem Anos de Solidão, que esqueceram os nomes de tudo e por isso colocam etiquetas em todo lugar? A informação na minha agenda conta como parte de minha memória? Se o caderno de Otto foi alterado, ele acredita na nova informação instalada? Eu acredito nos conteúdos da página em minha frente antes de eu a ler? Meu estado cognitivo é algo que se espalha por meio da Internet? 

Na medida em que faltam esses aspectos em casos paradoxais cada vez mais exóticos, a aplicabilidade da noção de ‘crença’ gradualmente cai. Se eu raramente tomo uma ação relevante sem consultar minha agenda, por exemplo, seu status dentro de meu sistema cognitivo vai se parecer com o do caderno de Otto. Porém, se eu frequentemente atuo sem consultar – por exemplo, se eu às vezes respondo as perguntas relevantes com ‘Eu não sei’ – então a informação nele conta menos claramente como parte de meu sistema de crenças. É provável que a Internet falhe em contas múltiplas, pelo menos eu sou excepcionalmente dependente do computador, adaptado à tecnologia, e confiante, mas a informação em certos arquivos em meu computador podem qualificar. Em casos intermediários, a questão de se uma crença está presente pode ser indeterminada ou a resposta pode depender de padrões variáveis que estão em jogo em vários contextos nos quais a questão pode ser colocada. Mas, qualquer indeterminação aqui não significa que em casos centrais a resposta não seja clara. 

E sobre a cognição socialmente estendida? Meus estados mentais poderiam ser parcialmente constituídos por estados de outros pensadores? Não vemos razão, em princípio, para que não. Em um acoplamento interdependente incomum, é inteiramente possível que as crenças do parceiro de alguém executem o mesmo tipo de função para o outro como o caderno executa para Otto. O que é central é um alto nível de confiança, fidedignidade e acessibilidade. Em outros relacionamentos sociais esses critérios podem não ser tão claramente preenchidos, mas eles podem, no entanto, ser preenchidos em domínios específicos. Por exemplo, o garçom do meu restaurante favorito pode agir como um repositório de minhas crenças sobre meus pratos favoritos (isso pode até mesmo ser construído como um caso de desejo estendido). Em outros casos, as crenças de alguém podem ser corporificadas por sua secretaria, contadora ou colaboradora. 

Em cada um dos casos, a principal tarefa de acoplar entre agentes é carregada pela linguagem. Sem a linguagem, podemos ser muito mais semelhantes com as discretas mentes ‘internas’ cartesianas, nas quais a cognição de alto nível repousa amplamente em fontes internas. Mas, o advento da linguagem nos permitiu espalhar essa tarefa dentro do mundo. A linguagem, assim construída, não é um espelho dos estados internos, mas um complemento deles. Ela serve como uma ferramenta cujo papel é estender a cognição de maneiras que dispositivos de bordo não podem. De fato, pode ser que a explosão intelectual no tempo evolutivo recente seja devido muito mais a essa extensão linguísticamente ativada da cognição do que a qualquer desenvolvimento em nossos recursos internos cognitivos. 

Finalmente, e sobre o self? A mente estendida implica um self estendido? Parece que sim. Muitos de nós já aceitamos que o self ultrapassa os limites da consciência; minhas crenças disposicionais, por exemplo, constituem em algum sentido profundo partes de quem eu sou. Se esse é o caso, então esses limites podem também ir além da pele. A informação no caderno de Otto, por exemplo, é uma parte central de sua identidade como agente cognitivo. Isto implica que Otto ele mesmo é melhor considerado como um sistema estendido, um acoplado do organismo biológico e de recursos externos. Para consistentemente resistir a essa conclusão, teríamos que reduzir o self a um mero grupo de estados ocorrentes, ameaçando gravemente sua continuidade psicológica. É muito melhor ter uma concepção mais ampla e ver os próprios agentes como se espalhando dentro do mundo. 

Assim como em qualquer re-concepção de nós mesmos, essa posição terá consequências significativas. Existem consequências óbvias para posições filosóficas da mente e para a metodologia de pesquisa na ciência cognitiva, mas haverá também efeitos nos domínios morais e sociais. Pode ser, por exemplo, que em alguns casos interferir no ambiente de alguém terá a mesma significação moral do que interferir em sua pessoa. E se a posição é tomada seriamente, certas formas de atividades sociais podem ser re-concebidas como menos semelhantes à comunicação e à ação, e mais semelhantes ao pensamento. Em todo caso, uma vez que a hegemonia da pele e do crânio é usurpada, podemos ser capazes de ver a nós mesmos mais verdadeiramente como criaturas do mundo. 

Referências Bibliográficas

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  1. Muito do apelo do externalismo em filosofia da mente pode partir do apelo intuitivo do externalismo ativo. Externalistas frequentemente fazem analogias envolvendo aspectos externos em sistemas acoplados e apelam para as arbitrariedades nos limites entre cérebro e ambiente. Mas essas intuições se sentem desconfortáveis com a letra do externalismo padrão. Na maioria dos casos de Putnam e Burge, o ambiente imediato é irrelevante; apenas o ambiente histórico conta. O debate tem se concentrado sobre a questão de se a mente deve estar na cabeça, mas uma questão mais relevante ao acessar esses exemplos pode ser: a mente está no presente? ↩︎
  2. Posições filosóficas em um espírito semelhante podem ser encontradas em Haugeland 1995, McClamrock 1996, Varela et. al. 1991 e Wilson 1994. ↩︎
  3. Na terminologia de Chalmers (em breve): os gêmeos nos casos de Putnam e Burge diferem apenas em seus conteúdos relacionais (intenção secundária), mas Otto e seu gêmeo podem ser vistos diferir em seus conteúdos fictícios (intenção primária), que é o tipo de conteúdo que governa a cognição. O conteúdo fictício é geralmente interno ao sistema cognitivo, mas nesse caso o sistema cognitivo é em si mesmo estendido efetivamente para incluir o caderno. ↩︎
  4. O critério de constância e endossamento do passado podem sugerir que a história é parcialmente constitutiva da crença. Alguém pode reagir a isso ao remover qualquer componente histórico (dar uma leitura puramente disposicional do critério de constância e eliminar o critério de endossamento do passado, por exemplo), ou alguém pode admitir um tal componente enquanto o principal fardo é carregado por aspectos do presente. ↩︎

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Sobre o(s) autor(es):

Andy Clark

Andy Clark é um renomado filósofo britânico, conhecido por suas contribuições à filosofia da mente, especialmente pela tese da mente estendida. Atualmente professor na Universidade de Sussex, Clark também ocupou cadeiras na Universidade de Edimburgo, foi diretor do Programa de Ciência Cognitiva na Universidade de Indiana e lecionou na Universidade Washington em St. Louis. Co-fundador do projeto Contact, ele investiga como o ambiente molda a experiência consciente. Autor prolífico, suas obras como “Being There” e “Supersizing the Mind” exploram o conexionismo, robótica e a natureza da representação mental, contribuindo significativamente à ciência cognitiva contemporânea.

David Chalmers

David John Chalmers é um filósofo australiano reconhecido por seus estudos em Filosofia da mente. Atualmente professor na Universidade Nacional da Austrália e diretor do Centro de Estudos da Consciência, Chalmers é autor do influente livro “The Conscious Mind” (1996), que desafia o fisicalismo ao explorar o problema mente-corpo. Suas teorias dualistas oferecem uma perspectiva única sobre a natureza da consciência, debatendo suas relações com a física e a filosofia. Ele é uma figura proeminente em conferências sobre consciência e publica regularmente artigos e ensaios que continuam a influenciar o campo da filosofia contemporânea.

Sobre o tradutor:

Rodrigo Ulhôa

Rodrigo Ulhôa Canto Reis possui Licenciatura, Mestrado e Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor temporário na Universidade Estadual de Maringá, com foco em Filosofia Contemporânea, Metafísica, Filosofia da Linguagem e Ciências Cognitivas, explorando temas como ceticismo, mente, autoconsciência corpórea, e os trabalhos de Peter Strawson e Ludwig Wittgenstein.

Sobre o revisor:

Eros Carvalho

Eros Moreira de Carvalho é professor Associado do departamento de Filosofia da UFRGS e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Ele realizou visita acadêmica na University of Edinburgh pelo programa da CAPES. É membro do Enactive Cognition and Narrative Research Group (University of Wollongong, Austrália) e do grupo Cognição, Linguagem, Enativismo e Afetividade (CLEA). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em Enativismo e Psicologia Ecológica (GEPEPE). Suas áreas de pesquisa incluem epistemologia, filosofia geral da ciência e filosofia das ciências cognitivas, com enfoque em cognição, conhecimento perceptivo e saber-fazer pela abordagem ecológica e enativa da mente.

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